quarta-feira, 8 de junho de 2011

preciso taaanto...

"Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser ao conjunto teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho carente, tigre e lótus."

Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 3 de junho de 2011

o meu coração tbm..

Coração
Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma
forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-
lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de
tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando
sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim,
de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou
qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma
letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas,
anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício,
definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças
na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar. Os
apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon,
contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz
para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas,
macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure
for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história
cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões,
anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre
acabam destruindo tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de
mim! ai, ai de mim! Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo,
transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto
quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana,
vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.
Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração teu.
(Pequenas Epifanias, Caio Fernando Abreu)

terça-feira, 31 de maio de 2011

e não importa!

''Não importa o quanto às vezes seja difícil, o quanto às vezes eu me atrapalhe, o quanto às vezes eu seja a densa nuvem que esconde o meu próprio sol, quantas vezes seja preciso recomeçar: combinei comigo não desistir de mim.''

Caio Fernando Abreu

cheia de luz, como eu...

'Uma alma cheia de luz, pronta pra explodir fogos de artifício numa noite de lua cheia.
A fé pendurada no pescoço.
Fita do Bonfim no tornozelo.
Barra da saia carregada de esperanças, nos olhos a cor da paz tão esperada.
Estende os braços pra sentir vento.
Um abraço de esculpir sorrisos.
Um sentimento faz claridade nos olhos até a pupila parecer arco-íris.
Suspiro.
É mudança.
Muitas, vês?
Já escolhi o destino.'
Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 27 de maio de 2011

mais, não é menos

E nessa vibe, de não ter nem tempo pra respirar, e passarei mais uma noite em claro estudando.. resolvi mudar o foco do post de hoje...
Estava fazendo um fichamento pra matéria de Teoria e história da arquitetura contemporânea, sobre o livro do Rafael Moneo, Inquietação teórica e estratégia projetual, e quando chegou na parte em que há uma citação do livro do Robert Venturi, Complexidade e contradição em arquitetura, eu simplesmente adorei, e resolvi postar, pra não esquecer...

Os arquitetos não podem mais se deixar intimidar pela linguagem puritanamente moralista da arquitetura moderna ortodoxa. Prefiro os elementos híbridos aos puros, os que aceitam compromisso aos “limpos”, os distorcidos aos “óbvios”, os ambíguos aos “articulados”, os deturpados que ao mesmo tempo são impessoais aos tediosos que ao mesmo tempo são “interessantes”, os convencionais aos “projetados”, os que buscam o acordo aos “excludentes”, os redundantes aos simples, os que nos falam do passado aos que são inovadores, os inconsistentes e equívocos aos diretos e claros. Defendo a vitalidade confusa ante a necessidade óbvia. Manifesto-me em prol do non sequitur e proclamo a dualidade.

Sou a favor da riqueza de significados ante a clareza de significado; das funções implícitas ante as explícitas. Prefiro “ambos ao mesmo tempo” a “um ou outro”, o branco e o preto, e algumas vezes o cinza, em lugar do branco ou do preto. Uma arquitetura válida conhece muitos níveis de significado e diversos focos: seu espaço e seus elementos se lêem e funcionam de diversas formas ao mesmo tempo.

Porém, uma arquitetura da complexidade e contradição tem uma especial obrigação para com o todo: sua verdade deve estar na totalidade ou nas suas implicações. A arquitetura deve incorporar a difícil unidade da inclusão, mais do que assumir a fácil unidade do exclusivo. Mais não é menos.


Robert Venturi, Complexidade e contradição

domingo, 22 de maio de 2011

talvez

Sem tempo pra postar por aqui, projeto me consumindo,haha.
Uma frase do amado Caio, pra matar as saudades...

"Talvez você pule esses três ou quatro muros que nos separam e segure a minha mão, assim, ofegante, pra nunca mais soltar."

quarta-feira, 4 de maio de 2011

terça,quarta - feira

“Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, até mesmo um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar.” Caio Fernando Abreu